La Historia como Historia Natural
Sinopse
Foi com uma pitadinha de inveja e uma explosão de entusiasmo que li esta reunião de ensaios de Donald E. Worster competentemente traduzidos ao espanhol, primeiro volume de uma coleção dedicada a obras fundamentais da área de história ambiental, sob editoração diligente de Guillermo Castro e Sandro Dutra e Silva. O primeiro sentimento se explica pelo fato da inexistência, até o presente momento, de iniciativa semelhante no Brasil. Lembro-me apenas de alguns poucos artigos traduzidos de forma esparsa para o português. Mas o que predominou foi o entusiasmo, pois que tal empreitada facilitará a circulação dessas obras entre a comunidade intelectual latino-americana – incluída aí a brasileira. Penso especialmente nos estudantes de graduação e pós-graduação, assim como professores do ensino médio ou secundário, que têm maior dificuldade de acessar obras publicadas em inglês.
A escolha de Worster para inaugurar a coleção se justifica plenamente, dado que esse pesquisador é um dos fundadores mais impactantes da história ambiental. A originalidade de seus numerosos escritos marcou gerações de pesquisadores, desde Nature’s Economy (1977), Dust Bowl (1979), passando por biografias de John Wesley Bowel e John Muir, aos mais recentes,
como Shrinking the Earth (2016), além de artigos de grande impacto em importantes revistas acadêmicas. É certo que os onze ensaios aqui reunidos são apenas pequena amostra de uma obra muito complexa. Mas o cuidado dos editores na escolha dos textos cumpre o importante papel de oferecer uma primeira experiência de leitura, despertando a expectativa de outras. Essa
“degustação” estimulará o desejo, entre os jovens pesquisadores latino-americanos, de superar as fronteiras linguísticas, tal como a leitura de Worster nos desafia tantas vezes ao alargamento de nossos horizontes em várias frentes.
Em primeiro lugar, o autor nos convida à abertura de nosso pensamento em sintonia com o alargamento de nossos passos. Ele nos desafia “a vagar por los campos, los bosques, al aire libre”. Seu conselho em Haciendo Historia Ambiental (1989) é que “nos compremos um buen par de sapatos para caminhar”, e que não nos preocupemos em sujá-los demasiadamente. Além dos trabalhos de campo envolvidos em suas pesquisas, Worster realmente é um exemplo dessa disposição peripatética: percorreu muitos lugares em suas atividades profissionais visitando regiões diversas da América Latina, África, Europa, Médio Oriente, além de uma larga estadia na China, como professor sênior, na Renmim University of China, in Beijing, incluindo incursões por outros países asiáticos.
Worster foi pioneiro na provocação de transcender os limites de nossas histórias nacionais e lançar indagações que considerem diferentes recortes territoriais e vastas dimensões temporais. Instiga a análise das constâncias e rupturas na história das sociedades humanas. Instaura especialmente a reflexão sobre grandes problemas que atingem toda a humanidade. Para além das muitas diferenças, as diversas sociedades vêm partilhando uma terra em comum, onde atmosfera, oceanos, rios, solos, fauna e flora coexistem em outras lógicas que extrapolam, em muito, o parâmetro das nações. O autor enfatiza ainda como a marca dos 8 bilhões de habitantes humanos gera um consumo explosivo dos recursos naturais e catapulta o nível da urgência de transformações da nossa relação com o planeta.
Também com Worster nos exercitamos a pensar para além das fronteiras da disciplina da história. Ao calçar os sapatos e ultrapassar os umbrais de seu gabinete, o caminhante precisa ser inventivo para diversificar os pressupostos que guiam sua mirada. É assim que o diálogo com a geografia, a antropologia, a ecologia e outras ciências humanas e naturais se apresenta como desafio imprescindível. Fascina-me, especialmente, a postura do autor em relação às ciências naturais. Para ele, o cientista atua em contextos socialmente construído (incluindo, claro, o historiador). A ciência é filha de seu tempo e, portanto, um fato cultural. Ao mesmo tempo, ressalta o valor inestimável do conhecimento científico para a compreensão dos desafios ambientais e para a busca de soluções. Como afirma em “¿Estamos perdiendo terreno? El ambientalismo a fines del siglo”, a ciência “no puede salvarnos por si mesma”, mas “uma actitud aberta hacia el desarrollo del conocimiento científico es el primer requisito del movimento conservacionista”. Particularmente, Worster nota como os historiadores se aventuraram a alargar seu pensamento com as ideias de grandes intelectuais como Karl Marx e Sigmund Freud, mas ignoraram a importância de Charles Darwin para a teoria histórica. Com isso, perdem a oportunidade de uma série de insights que ele poderia trazer para o reconhecimento da profunda dependência dos seres humanos em relação ao mundo natural, e mesmo a sua indissociabilidade.
Enfim, precisamos do conhecimento científico, mesmo que o estatuto de suas verdades deva ser redimensionado: a “era da ecologia” demanda “una noción de verdade más cuidadosamente acotada, escéptica y humilde”.
Há um elogio da humildade intelectual nos escritos de Worster. Afinal, os maiores esforços do intelecto em unir as humanidades às ciências naturais não podem resolver de uma vez por todas algumas das questões fulcrais de nosso tempo, demasiadamente amplas e que não admitem respostas unívocas. Não há possibilidade de uma história total, que a tudo descortinaria.
Mas nem por isso a história ambiental é menos valorosa, pois poderá “traer de vuelta esse significado de la naturaliza moderna e, com la ayuda de la ciência moderna, a descobrir algunas verdades frescas acerca de nosostros mismo y de nuestro passado” (Transformaciones de la tierra).
Simultaneamente à humildade intelectual, o rigor acadêmico é indispensável, e os historiadores devem estar mesmo dispostos ao aprendizado.
Se desejam praticar a transdisciplinaridade, se querem apostar no “reencuentro de culturas”, devem ser cuidadosos e procurar os mais recentes desenvolvimentos das ciências com as quais pretendem dialogar, já que o saber – tal como o mundo natural e as sociedades humanas – não é inerte, e transforma-se todo o tempo.
Assumir o ofício do historiador como tarefa diferenciada e corajosa na “era da ecologia” é outro apelo dirigido aos leitores. A história ambiental nasceu conectada a propósitos morais, no bojo de profundos questionamentos dos valores da sociedade contemporânea desde os anos 1960s, particularmente nos meios ativistas e intelectuais norte-americanos. Surgiu também
mesclada à agenda de muitos compromissos políticos. Certamente, historiadores ambientais têm o dever de divulgar conhecimento aos mais diversos setores sociais, e tomar parte dos grandes temas públicos de seu tempo. Mas eles não podem se contentar com isso, pois que os compromissos da dedicação acadêmica não devem ser guiados por uma agenda moral ou política específica. É necessário alcançar a devida sofisticação que diferencie os historiadores do ativista sob pena de perderem sua identidade como tal.
Diferenças guardadas, é inegável que o saber histórico e o ativismo só têm a lucrar ao abrir janelas profícuas de comunicação e mútua crítica.
Enfim, são muitos os estímulos de pensamento e de prática teórico-metodológica para os historiadores ambientais presentes nas obras de Worster.
Podemos – e devemos – questionar vários desses pontos. Eu, particularmente, tenho dificuldades com sua busca de constantes históricas, ou mesmo com a recorrência, por vezes, à ideia de “natureza humana”. Outra discussão seria a de contestar o neomaltusianismo presente na identificação da superpopulação como um dos dois maiores problemas de nosso tempo. Talvez
isso tenha sido um efeito da longa permanência do autor na China, país mais populoso da Terra e cujas classes médias ascenderam a um alto padrão aquisitivo. Entretanto, como sabemos, entre os bilhões de seres humanos, uma parcela muito pequena e privilegiada é a responsável pela esmagadora maior parte do consumo e da produção de resíduos.
Um contraponto possível ao pessimismo neomalthusiano é o reconhecimento, pelo autor, de que o caminho a uma relação ética com o planeta necessariamente inclui a revisão dos nossos valores econômicos e materiais.
Pensar a terra como comunidade partilhada, não como uma mercadoria: essa é uma das suas grandes assertivas, unindo propósitos morais e políticos a uma análise histórica fundamentada e ao conhecimento científico. Worster tampouco é ingênuo e avisa: uma nova ética da terra cobrará seu preço.
Resta saber, se estaremos dispostos a pagá-lo. Sem otimismos simplistas, mas sem abdicar da esperança, ele anseia que as respostas venham não apenas de filósofos, cientistas e grandes pensadores, mas dos “biliones de personas dispersas por la Tierra – um enjambre dividido por classe y privilégio, raza y región, género y edad”.
Nos vários ensaios deste livro, encontrei miríades de provocações teóricas, convites e desafios para todos aqueles que ousam abraçar a história ambiental. Estou confiante de que outros leitores deste volume também encontrarão matéria para reflexões estimulantes. E, talvez, ao chegar às últimas páginas, vistam seus sapatos de caminhada, revigorados para esta aventura
que é o conhecimento histórico.
Regina Horta Duarte
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil